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São Paulo voltou a ampliar as restrições para a circulação de pessoas. A partir de segunda-feira, 25 de janeiro, todo o Estado deverá fechar os serviços não essenciais todos os dias da semana a partir de 20h até às 6h da manhã do dia seguinte, e durante todas as horas do final de semana. A medida de João Doria (PSDB), detalhada em entrevista coletiva nesta-sexta-feira, valerá ao menos até 8 de fevereiro e procura responder à expansão da covid-19 no Estado, que atingiu a marca dos 50.938 mortos no dia anterior. Mas chega com atraso. O governador demorou a acatar as sugestões dos epidemiologistas que assessoram seu Governo, mesmo com a doença em ascensão nos municípios paulistas há semanas. Doria, que tem se colocado ao lado da ciência em oposição à postura negacionista do presidente Bolsonaro, preferiu manter até o momento boa parte do território praticamente aberto, sem medidas rígidas de distanciamento social e cedendo à pressão dos setores econômicos.
“O que foi feito nas últimas semanas não seguiu o que a gente gostaria. Nós temos que fechar porque a coisa está ficando cada vez mais feia”, argumentou ao EL PAÍS o médico infectologista Marcos Boulos, que faz parte do comitê de 20 especialistas que assessoram o Governo estadual nas medidas contra a doença. As declarações do próprio secretário da Saúde Jean Gorinchteyn na última segunda-feira não deixavam dúvidas, ao dizer que o Estado havia atravessado sua ”pior semana epidemiológica da história da pandemia”. São Paulo havia iniciado a semana registrando uma alta de 60% de mortes com relação a duas semanas atrás, resultado das festas de fim de ano.
“São Paulo está na pior fase da epidemia, numa fase muito grave. Existe possibilidade concreta de um caos na atenção médica, porque as UTIs já estão próximas de seu limite”, afirma o infectologista Boulos. O Estado gerido por Doria é o mais rico do país e vem investindo desde o início da pandemia na abertura de leitos para evitar a sobrecarga de seu sistema de saúde.
Mas, dias depois do colapso em Manaus por causa da falta de oxigênio nos hospitais, a falta do insumo essencial também matou ao menos dois pacientes em dezembro na cidade de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, afirmou a Folha de S. Paulo. Também traz preocupação o índice de ocupação das UTIs, que em menos de um mês passou de 61,8% para 70,8% no Estado de São Paulo e de 66,9% para 71,5% na Grande São Paulo. “Pode ser que no começo de fevereiro a gente tenha que escolher quais pacientes vão pra UTI”, alerta Boulos.
O Brasil vive o auge da segunda onda com poucas medidas de restrição à circulação de pessoas —ao contrário de países como o Reino Unido, que decretou o endurecimento do confinamento da população mesmo após um mês vacinando. O Estado de São Paulo deu a largada para a imunização dos brasileiros no último domingo, com Doria fazendo a primeira foto dessa campanha, gerando uma onda de euforia que tomou conta do país e despertando a fúria do Governo federal. A politização da vacina acabou tirando os holofotes da piora dos números do Estado e da necessidade de medidas mais restritivas, como vêm alertado os especialistas do Centro de Contingência do Coronavírus, que assessora a gestão estadual.
Mesmo registrando as maiores taxas de mortes desde agosto, o Governo Doria mantinha até esta sexta-feira seis regiões (67% de toda a população paulista), entre elas a Grande São Paulo, na fase amarela do Plano São Paulo, a política adotada no início da pandemia que determina o nível de restrições por áreas do Estado. A fase amarela é a terceira mais restritiva e autoriza o funcionamento de atividades não essenciais por até 12 horas diárias. Outras 10 regiões (31% da população) estavam na fase laranja, a segunda de maior restrição. Nela, atividades como restaurantes e cinemas podem funcionar por até oito horas por dia. Somente uma região, a de Marília, estava na fase vermelha —na qual somente os serviços essenciais, como mercados e farmácias, estão autorizados a funcionar.
Além disso, Doria redefiniu critérios e, indo na contramão do mundo, afrouxou as restrições do Plano São Paulo no dia 8 de janeiro, quando o Estado já registrava uma quantidade de casos e mortes em ascensão. Naquela sexta-feira, São Paulo havia registrado 261 mortes em 24 horas, totalizando 48.029 desde o início da pandemia, além de 13.794 novos casos. Ainda assim, o Governo Doria alterou a fase laranja e passou a liberar o funcionamento de academias, salões de beleza, restaurantes, cinemas, teatros e parques estaduais. Essas e outras atividades passaram poder funcionar por até oito horas diárias, e não mais por apenas quatro, com a capacidade de público subindo de 20% para 40%. O encerramento do atendimento presencial passou a ser às 20h.
A fase amarela, na qual se encontrava a capital paulista até esta sexta, também passou a permitir 40% de ocupação para atividades não essenciais, com expediente de até dez horas diárias para restaurantes e 12 horas para as demais. O atendimento presencial deve ser encerrado às 22h em todos os setores, com exceção dos bares, que devem fechar ao público às 20h. A intenção ao alongar os horários de funcionamento era a de “evitar aglomerações” e “reduzir o fluxo de pessoas em horários específicos”, afirmou na ocasião a Secretária de Desenvolvimento Econômico, Patricia Ellen. A taxa de isolamento da população se mantém em 40% tanto na capital como no resto do território estadual, segundo o Governo. Em maio do ano passado o Estado de São Paulo chegou a registrar 55% de taxa de isolamento, sendo 57% na capital. Os índices foram considerados satisfatórios, mas ainda longe do ideal de 70% que o comitê de especialistas recomendava.
Agora, com a atualização do Plano São Paulo nesta sexta-feira, todo o Estado passará para a fase vermelha diariamente a partir das 20h. Essa restrição máxima deverá valer até às 6h da manhã seguinte —o horário ainda será confirmado na coletiva desta sexta-feira. Além disso, a fase vermelha valerá durante os fins de semana, entre a noite de sexta-feira e a manhã de segunda-feira. Com isso, todos os serviços não essenciais deverão manter suas portas fechadas. Somente mercados, farmácias e outros comércios considerados essenciais poderão manter suas portas abertas.
Cortes na ciência e atropelos na vacinação
O discurso pró-ciência de Doria também fica fragilizado quando se verifica que sua gestão chegou a propor no ano passado um corte de 454 milhões de reais na Fapesp, o que significava retirar 30% do Orçamento do principal órgão de fomento à pesquisa do Estado, além de enviar um projeto de lei que redirecionava recursos das universidades estaduais paulistas para o Orçamento do Governo. Em ambos os casos o governador voltou atrás, após a pressão da comunidade científica.
A iniciativa do governador de começar a vacinação em São Paulo antes do resto do país também gerou alguns ruídos entre profissionais envolvidos no combate à pandemia e na vacinação, os quais falam em “atropelos” por parte de Doria nesse processo, conforme apurou o EL PAÍS. Quando os cinco diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) terminaram de aprovar por unanimidade a autorização para uso emergencial da Coronavac, o tucano se apressou em subir ao palco e ser fotografado ao lado da enfermeira Monica Calazans, a primeira pessoa a ser vacinada contra a covid-19 no Brasil.
A decisão da Anvisa ainda não havia sido publicada e o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, ainda não havia assinado um termo de compromisso com a agência assegurando que entregaria outros dados de imunogenicidade da Coronavac —a capacidade da vacina de provocar resposta imune à doença— até o dia 28 de fevereiro. De acordo com as regras da agência, a vacina só poderia ser aplicada após a assinatura desse termo, que só foi publicado em edição extra do Diário Oficial da União horas depois do início da imunização.
“A discussão sobre a vacina foi completamente politizada, e o governador queria mostrar que ganhou uma batalha contra o presidente. Mas o normal seria que as vacinas fossem primeiro para o Ministério da Saúde e distribuídas pelo Plano Nacional de Imunização”, explica o infectologista Boulos. Outro profissional expressou sob a condição de anonimato seu desconforto pelo fato de que Doria está baseando suas ações no marketing político por conta de sua rivalidade com Bolsonaro, “deixando de dar uma resposta institucional bem feita e agindo contra o SUS”.
O médico e advogado sanitarista Daniel Dourado argumenta, por sua vez que, apesar das ações de marketing de Doria, o governador agiu diante da falta de coordenação do Ministério da Saúde. “É importante dizer que os governos estaduais têm autonomia para as ações dos serviços de saúde, principalmente com essa omissão do ministério. Não diria que houve uma infração ou atropelo aos princípios do SUS”, argumenta. Ele acredita que as ações do tucano podem, no máximo, resultar em uma “infração sanitária de menor potencial ofensivo”, o que até poderia render uma multa ao governador. Mas acredita que esse possível cenário já estava no cálculo político de Doria, que preferiu correr o risco para se associar à imagem do gestor que começou a imunização no Brasil.